Tuesday, November 08, 2005

Sobre o tempo e a eternidade.

"Fui convidado a fazer uma preleção sobre saúde mental. Os que me convidaram
supuseram que eu, na qualidade de psicanalista, deveria ser um especialista
no assunto. E eu também pensei. Tanto que aceitei. Mas foi só parar para
pensar para me arrepender. Percebi que nada sabia.

Eu me explico:

Comecei o meu pensamento fazendo uma lista das pessoas que, do meu Ponto de
vista, tiveram uma vida mental rica e excitante, pessoas cujos livros e
obras são alimento para a minha alma. Nietzsche, Fernando Pessoa, Van Gogh,
Wittgenstein, Cecília Meireles, Maiakovski.

E logo me assustei.

Nietzsche ficou louco.

Fernando Pessoa era dado à bebida.

Van Gogh matou-se.

Wittgenstein alegrou-se ao saber que iria morrer em breve: não suportava
mais viver com tanta angústia.

Cecília Meireles sofria de uma suave depressão crônica.

Maiakoviski suicidou-se.

Essas eram pessoas lúcidas e profundas que continuarão a ser pão para os
vivos muito depois de nós termos sido completamente esquecidos.

Mas será que tinham saúde mental?

Saúde mental, essa condição em que as idéias comportam-se bem, sempre
iguais, previsíveis, sem surpresas, obedientes ao comando do dever, todas as
coisas nos seus lugares, como soldados em ordem unida, jamais permitindo que
o corpo falte ao trabalho, ou que faça algo inesperado; nem é preciso dar
uma volta ao mundo num barco a vela, basta fazer o que fez a Shirley
Valentine (se ainda não viu, veja o filme) ou ter um amor proibido ou, mais
perigoso que tudo isso, a coragem de pensar o que nunca pensou.

Pensar é uma coisa muito perigosa...

Não, saúde mental elas não tinham...

Eram lúcidas demais para isso. Elas sabiam que o mundo é controlado pelos
loucos e idosos de gravata. Sendo donos do poder, os loucos passam a ser os
protótipos da saúde mental. Claro que nenhum dos nomes que citei
sobreviveria aos testes psicológicos a que teria de se submeter se fosse
pedir emprego numa empresa. Por outro lado, nunca ouvir falar de político
que tivesse depressão. Andam sempre fortes em passarelas pelas ruas da
cidade, distribuindo sorrisos e certezas. Sinto que meus pensamentos podem
parecer pensamentos de louco e por isso apresso-me aos devidos
esclarecimentos. Nós somos muito parecidos com computadores.

O funcionamento dos computadores, como todo mundo sabe, requer a interação
de duas partes. Uma delas chama-se hardware, literalmente "equipamento
duro", e a outra denomina-se software, "equipamento macio". Hardware é
constituído por todas as coisas sólidas com que o aparelho é feito. O
software é constituído por entidades "espirituais" - símbolos que formam os
programas e são gravados nos disquetes.

Nós também temos um hardware e um software. Os hardwares são os nervos do
cérebro, os neurônios, tudo aquilo que compõe o sistema nervoso.

O software é constituído por uma série de programas que ficam gravados na
memória. Do mesmo jeito como nos computadores, o que fica na memória são
símbolos, entidades levíssimas, dir-se-ia mesmo "espirituais", sendo que o
programa mais importante é a linguagem.

Um computador pode enlouquecer por defeitos no hardware ou por defeitos no
software.

Nós também.

Quando o nosso hardware fica louco há que se chamar psiquiatras e
neurologistas, que virão com suas poções químicas e bisturis consertar o que
se estragou. Quando o problema está no software, entretanto, poções e
bisturis não funcionam. Não se conserta um programa com chave de fenda.
Porque o software é feito de símbolos, somente símbolos, podem entrar dentro
dele.

Assim, para se lidar com o software há que se fazer uso dos símbolos eles
podem vir de poetas, humoristas, palhaços, escritores, gurus, pastores,
amigos e até mesmo psicanalistas...

Acontece, entretanto, que esse computador que é o corpo humano tem uma
peculiaridade que o diferencia dos outros: o seu hardware, o corpo, é
sensível às coisas que o seu software produz.

Pois não é isso que acontece conosco?

Ouvimos uma música e choramos. Lemos os poemas eróticos de Drummond e o
corpo fica excitado.

Imagine um aparelho de som. Imagine que o toca-discos e os acessórios, o
hardware, tenham a capacidade de ouvir a música que ele toca e se comover.
Imagine mais, que a beleza é tão grande que o hardware não a comporta e se
arrebenta de emoção!

Pois foi isso que aconteceu com aquelas pessoas que citei no princípio:

A música que saia de seu software era tão bonita que seu hardware não
suportou... Dados esses pressupostos teóricos, estamos agora em condições de
oferecer uma receita que garantirá, àqueles que a seguirem à risca, "saúde
mental" até o fim dos seus dias.

Opte por um software modesto. Evite as coisas belas e comoventes. A beleza é
perigosa para o hardware. Cuidado com a música... Brahms, Mahler, Wagner,
Bach são especialmente contra-indicados. Quanto às leituras, evite aquelas
que fazem pensar. Tranquilize-se há uma vasta literatura especializada em
impedir o pensamento. Se há livros do doutor Lair Ribeiro, por que se
arriscar a ler Saramago? Os jornais têm o mesmo efeito. Devem ser lidos
diariamente. Como eles publicam diariamente sempre a mesma coisa com nomes
e caras diferentes, fica garantido que o nosso software pensará sempre
coisas iguais. E, aos domingos, não se esqueça do Silvio Santos e do Gugu
Liberato. Seguindo essa receita você terá uma vida tranqüila, embora banal.

Mas como você cultivou a insensibilidade, você não perceberá o quão banal
ela é. E, em vez de ter o fim que tiveram as pessoas que mencionei, você se
aposentará para, então, realizar os seus sonhos.

Infelizmente, entretanto, quando chegar tal momento, você já terá se
esquecido de como eles eram..."



Rubem Alves .

Sobre o tempo e a eternidade.

Campinas: Ed. Papirus, 1996