O medo que tortura
O medo que tortura
Milhões de brasileiros enfrentam um
pesadelo cotidiano: as fobias e os
transtornos de pânico.
A boa notícia é que muitos
estão procurando ajuda
Montagem sobre fotos de Tony Stone e Antonio Milena |
"Um dos efeitos do medo é perturbar os sentidos e fazer com que as coisas não pareçam o que são." A frase é do autor espanhol Miguel de Cervantes e está no clássico Dom Quixote, escrito no alvorecer do século XVII. Tomada de empréstimo de seu contexto, ela sintetiza o que ocorre com quem sofre de uma doença que, longe de ser uma novidade na literatura médica, vem aparecendo com freqüência cada vez maior em consultórios psiquiátricos e clínicas psicológicas. Trata-se do medo patológico. Ele se diferencia do medo normal por não ter causa objetiva ou base na realidade e provocar uma aflição desmedida. O distúrbio pode apresentar-se como fobia específica (pavor de animais, de escuridão, de água etc.), fobia social (da qual o horror de falar em público é o exemplo mais popular) e sob a forma de ataques de pânico – em que o paciente passa a ser acometido de uma hora para outra de sintomas físicos terríveis, sem que saiba identificar exatamente o que o ameaça. Um estudo realizado em meados da década de 90 nos Estados Unidos mostra que 25% da população americana teve, tem ou terá, em algum momento da vida, um episódio de fobia. No Brasil, como de praxe, não há números nacionais a respeito do assunto. As estatísticas estão restritas a grandes centros. Mesmo assim, os dados impressionam: o medo patológico, em suas diferentes formas e intensidades, afeta 18% dos habitantes de Brasília, 11% dos de São Paulo e 9% dos moradores de Porto Alegre
O pavor em números |
O medo patológico afeta O distúrbio atinge duas vezes mais mulheres que homens Fontes: Ambulatório de Ansiedade do Hospital das Clínicas, |
Existem três razões para o aumento do registro de casos nos últimos anos. Antes de mais nada, fobias e transtornos de pânico estão relacionados em boa parte das vezes a quadros de ansiedade, angústia e depressão, verdadeiros flagelos da modernidade. Em segundo lugar, o medo patológico começa a deixar de ser visto pelos leigos como algo tão incancelável quanto uma característica de personalidade. Com a divulgação de tratamentos de choque e o surgimento de medicamentos, um grande contingente de doentes agora se vê estimulado a procurar ajuda. Acrescente-se a esses motivos o fato de que, não importa o universo pesquisado, tais distúrbios afetam duas vezes mais mulheres que homens. Com a maior inserção feminina no mercado de trabalho, é natural que elas sintam a necessidade de colocar um fim a tormentos que, não raro, prejudicam bastante sua carreira profissional. Uma dona-de-casa, por exemplo, pode ter medo incontrolável de avião. Uma executiva, não.
Em suas manifestações mais agudas, as fobias e o pânico são altamente limitantes e quase sempre expõem a vexames de toda ordem. O medo de elevador pode fazer com que uma pessoa simplesmente se recuse a trabalhar ou morar em andar alto – o que, convenhamos, representa enorme problema, dado o irreversível processo de verticalização urbana. O deputado José Genoíno, do PT de São Paulo, sofre dessa fobia. "Meu medo de elevador é tanto que, quando realmente é necessário, peço a alguém que suba e desça comigo", conta Genoíno (veja depoimentos). Entre os que têm pavor de voar, figura o ator carioca Pedro Cardoso. Ele não pisa em avião de jeito nenhum. Na única vez em que foi à Europa, precisou tomar uns drinques a mais para segurar o medo e protagonizou um espetáculo nada engraçado para quem estava a seu lado. Há quem sue frio só de pensar em se sentar à direção de um carro. Imagine o que isso significa em cidades como São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília, onde o transporte coletivo é uma ficção de horror e o automóvel é quase uma extensão corporal do cidadão de classe média. A fobia social grave, por seu turno, transforma o cotidiano em um pesadelo. Quem sofre do distúrbio é incapaz de conversar com o chefe, trocar opiniões com os colegas de trabalho ou expor suas idéias numa reunião. Muitos fóbicos sociais também não conseguem comer em público.
Valdemir Cunha O sucesso dos parques de diversão: medo como entretenimento |
O pânico costuma ser ainda mais incapacitante. A atriz Lídia Brondi, um dos principais nomes da televisão brasileira na década de 80, interrompeu sua carreira nas novelas da Rede Globo por causa do problema. Transformou-se em dona-de-casa e não gosta de falar sobre o assunto, com toda a razão. Outra que quase bateu em retirada do vídeo foi Adriana Esteves, que estrela a novela das 6, O Cravo e a Rosa. Um ataque de pânico é uma das experiências mais devastadoras que um ser humano pode enfrentar. Ele ocorre sem aviso prévio, em situações das mais comezinhas – no trabalho, numa festa, no carro. A pessoa começa a tremer, é tomada pela tontura, a pressão arterial dispara, o coração bate descompassado. Os sintomas são parecidos com os de um infarto, e, nesse instante, a morte iminente adquire os contornos de certeza. Depois da primeira crise, o calvário tem o seguinte script: faz-se uma batelada de exames clínicos, o médico verifica que não há nada de errado e ainda assim as crises continuam. Um dos piores aspectos do pânico é o que os médicos chamam de "medo de ter medo". Apavorada com a idéia de voltar a sentir os sintomas, a pessoa passa a fugir dos ambientes em que os ataques ocorreram, como se tal atitude pudesse evitá-los. É por essa razão que tantas vítimas acabam se trancafiando em casa.
Entre as crises de pânico propriamente ditas, outros sintomas aparecem. Em determinados momentos, pensamentos confusos se atropelam numa velocidade tamanha que muitos acham que estão ficando loucos. Também são comuns os relatos de quem não consegue engolir. "Houve uma época em que eu tinha medo de engasgar com um simples grão de feijão. Só comia papinhas de frutas, sopas e purês. No banho, tinha a sensação de que iria me afogar com a água do chuveiro", descreve a atriz Esther Lacava, 35 anos, de São Paulo. De tão recorrente, a síndrome do pânico, nome popular desse tipo de transtorno, tornou-se tema de livros e filmes. Na fita Copycat, a atriz Sigourney Weaver interpreta uma psiquiatra forense que não consegue sair de casa. Na série de televisão Família Soprano, que vai ao ar pelo canal a cabo HBO, o chefe do clã mafioso é acometido de ataques de pânico e vai parar no consultório de uma psicanalista. O tema está previsto para ser tratado até no seriado Malhação, da Rede Globo, produzido para o público jovem.
Qual seria a origem desses tipos de desordem mental que atingem milhões de pessoas mundo afora? Há cerca de um século começaram as primeiras investigações a respeito do assunto. Elas logo se bifurcaram. Nos Estados Unidos, onde predomina a visão cientificista, os estudiosos sempre tentaram delimitar com exatidão as áreas do cérebro responsáveis pelo medo. A idéia que os move é encontrar uma droga que atue sobre elas e elimine distúrbios fóbicos e afins. Paralelamente, os americanos desenvolveram tratamentos derivados da psicologia comportamental, que vêm encontrando grande ressonância entre os médicos brasileiros (veja quadro). Na Europa, onde as correntes psicanalíticas têm mais força, a abordagem do problema privilegia a história pessoal de cada paciente. Desse ponto de vista, o medo patológico é apenas a expressão de uma angústia mais profunda. Não pode ser considerado uma doença em si.
Os dois lados contabilizam conquistas e tropeços. Hoje se sabe que as amígdalas, estruturas cerebrais localizadas na região das têmporas, têm a função de identificar situações de perigo e enviar ao hipotálamo, local de controle do metabolismo, o sinal para que certas reações sejam deflagradas (veja quadro). As amígdalas reconhecem uma ameaça porque são alimentadas pelo sistema límbico, a parte mais primitiva do cérebro, que constitui uma espécie de banco de memória do medo. É no sistema límbico que estão armazenadas as informações que remetem a temores ancestrais, como os de animais ferozes, fogo ou escuridão. Além disso, o sistema límbico registra dados que se referem a experiências em que o medo foi adquirido por aprendizado ou por trauma. De acordo com pesquisas recentes, os fóbicos apresentariam uma hiperatividade nessa região.
Os pesquisadores agora se empenham em afinar a descoberta de que o sistema é regulado por duas substâncias neurotransmissoras, a serotonina e a noradrenalina, que se relacionam ao humor e às sensações de prazer e bem-estar. A história dos antidepressivos, usados também para combater fobias e pânico, está intimamente ligada aos avanços nessa direção. No início, as esperanças depositavam-se sobre drogas como Anafranil e Tofranil, que agem sobre a química cerebral como um todo. A constatação de que a serotonina tinha um papel preponderante no processo propiciou a criação de medicamentos que atuam especificamente sobre esse neurotransmissor. As vedetes da categoria são o Prozac e o Zoloft, que prometiam uma revolução e chegaram a ser anunciados como a conquista da felicidade suprema. No entanto, os remédios de última geração, lançados com muito menos estardalhaço, têm obtido melhores resultados ao interferir nos níveis tanto da serotonina como da noradrenalina. As estrelas do momento são o Luvox, o Serzone e o Efexor.
A pílula milagrosa, porém, ainda é uma miragem. Nenhuma das drogas existentes cura por completo fobias ou pânico. Elas servem para controlar a intensidade dos sintomas – o que, sem dúvida, faz uma enorme diferença para os que sofrem desses problemas. Já se constatou também que os remédios são mais eficazes quando associados a terapias. O campo terápico é vasto. Trata-se de entender por que há pessoas que desenvolvem medos doentios, sem nunca ter passado por experiências traumáticas diretamente relacionadas a eles. É nesse vácuo que entra a psicanálise. Os seguidores de Sigmund Freud enfatizam que o desequilíbrio na química do cérebro não é causa da doença, mas conseqüência. Assim como ocorre com os transtornos de pânico, no que se refere às fobias a psicanálise procura sentidos que variam de paciente para paciente. Ou seja, duas pessoas com pavor de avião não sofreriam desse mal necessariamente por motivos idênticos. O avião (ou o inseto, o carro, a tempestade, não importa) seria apenas a representação da uma angústia mais recôndita. Superada a angústia, perde-se o pavor. Mesmo quando há traumas no histórico de um paciente, a psicanálise não estabelece conexões mecânicas. O deputado José Genoíno, que não entra num elevador sozinho, acha possível que seu distúrbio esteja relacionado ao período em que permaneceu confinado numa prisão solitária, em 1972, durante o regime militar. Um psicanalista que o atendesse levaria em conta essa associação, é claro, mas também procuraria outras causas para o problema. Por uma razão simples: nem todo mundo que passa por tal experiência desenvolve pânico de elevador ou claustrofobia.
É a partir desse ponto de vista que o psicanalista Renato Mezan, um dos mais respeitados do Brasil, critica as terapias de choque. Ao se restringirem aos sintomas do medo patológico, sem ir fundo em suas origens, elas funcionariam apenas como paliativo. "Se nos dedicarmos somente ao tratamento dos sintomas, eles podem até desaparecer. Mas é certo que serão substituídos por outros, já que a sua causa principal, a angústia, não foi atacada", afirma Mezan. As duas correntes vivem se alfinetando. A psicanálise perdeu prestígio e credibilidade nas últimas duas décadas, fustigada principalmente pelos adeptos da escola da psicologia comportamental e pelos psiquiatras que vêem nos remédios a solução para tudo. Muito blablablá e nenhuma ciência, dizem eles. As circunvoluções psicanalíticas, aliás, têm proporcionado ótimas piadas. Uma das mais memoráveis é uma cena do filme Manhattan, do diretor americano Woody Allen, ele próprio um eterno paciente de divãs psicanalíticos. Numa festa, uma jovem diz a amigos que havia tido cinco orgasmos na noite anterior. "No entanto, estou infeliz. Meu analista disse que nenhum foi do tipo certo", acrescenta ela.
Para quem se inclina mais para um tratamento profundo, como a psicanálise, é bom saber que ela costuma ser longa e cara. Psicanalista que se preza não garante melhoras substanciais antes de dois anos de sessões. E nem sempre um fóbico ou uma vítima de pânico quer empreender uma interminável aventura de autoconhecimento para entender o motivo de seus males. Ele quer curar-se ou atenuar seus sintomas rapidamente. As terapias de choque tentam suprir esse desejo ao ir direto ao ponto. Seu método, em resumo, é "treinar" o paciente para que enfrente seus medos, até ele perceber o absurdo em que está enredado. Em relação às fobias específicas, pode-se notar um progresso expressivo após dois meses. Fobia social e pânico exigem um pouco mais de tempo: de seis meses a mais de um ano. É verdade, como aponta Mezan, que alguns pacientes podem, no processo, substituir seus pavores antigos por outros sintomas. Mas que tratamento, para qualquer dos males que afligem a humanidade, garante cura de 100% na totalidade dos casos? É assim também no universo dos medos doentios. As esperanças de conseguir alívio para eles, no entanto, hoje são bem maiores que no passado.
Fora do âmbito médico e psicológico, é interessante notar que o aumento nos casos de fobias e pânico contrasta com a miragem oferecida pela sociedade contemporânea de uma vida sem riscos, imersa numa bolha protetora. Estudiosos da área sociocultural chamam a atenção para o fato de que, nos países desenvolvidos e nos bolsões de riqueza de nações como o Brasil, as sensações físicas associadas ao medo estão cada vez mais restritas ao campo do entretenimento. É nos parques de diversão que as pessoas vivenciam, ainda que virtualmente, quedas, vertigens, o desconhecido. Tais artifícios, segundo esses estudiosos, dariam vazão a um paradoxo: muitas vezes, o homem precisa ter medo para sentir-se vivo.
Como o corpo reage numa situação de ameaça, seja ela real ou não 1. Cérebro: as estruturas responsáveis por iniciar a reação a estímulos amedrontadores são as amígdalas cerebrais, localizadas na região das têmporas. Elas enviam um sinal ao hipotálamo, região de controle do metabolismo, para que seja intensificada a produção de adrenalina, noradrenalina e acetilcolina. Em uma fração de segundo, a descarga dessas substâncias causa alterações no funcionamento de diversas partes do corpo 2. Olhos: a química do medo faz com que as pupilas se dilatem. Isso diminui a capacidade de a pessoa reparar nos detalhes que a cercam, mas aumenta o poder de visão geral. Em tempos ancestrais, esse recurso permitia que o homem identificasse no escuro das cavernas um predador e as possíveis rotas de fuga 3. Coração e pulmões: o aumento do nível de adrenalina eleva os batimentos cardíacos. A maior irrigação sanguínea faz com que cérebro e músculos trabalhem mais intensamente, deixando a pessoa alerta e ágil. O fato de o coração bater acelerado exige maior oxigenação daí por que a respiração se torna mais curta, ofegante 4. Estômago: muitas pessoas, em situações de medo, sentem dor na região estomacal devido ao aumento na produção de acetilcolina. A liberação em maior quantidade de sucos gástricos acelera a digestão e a transformação dos alimentos em energia Fonte: Frederico Graeff, Universidade de São Paulo, em Ribeirão Preto |
Reza, calmante e olho no piloto
Claudia Ohana, 36 anos, |
Quando as palavras não saem
Wilma Bolsoni, 37 anos, |
Afogamento no chuveiro
Nelson Dorneles, 54 anos, |
Noite de trovão, noite de agonia
Fernando Vivas |
"Tenho um temor fora do comum de tempestades. Mais especificamente, de trovões. Nesses momentos, não consigo esboçar nenhum tipo de reação. Fico paralisada. Me falta energia até para pedir socorro. Noite chuvosa é sinônimo de insônia. Além de não pregar os olhos, tenho de me abrigar na cama dos meus pais. Eles já sabem que quando começa a chover precisam vir ao meu quarto me resgatar. Não consigo nem ir até lá. Há dois anos, passei por um verdadeiro pesadelo. Estava sozinha em casa estudando para uma prova quando começou um temporal. Congelada pelo pânico, não pude sair de casa para fazer o teste. Só quando a chuva passou consegui ir à aula. Cheguei atrasada e destruída. Lívida, eu suava em bicas. Além do susto, a incompreensão dos colegas piorava a minha situação. Tão aterrorizante quanto os raios é o medo de que as pessoas percebam o meu estado de pânico. Sempre temo ser chamada de infantil ou de descontrolada. Hoje faço análise e descobri que é possível superar a fobia, mas demora. O que estou aprendendo por enquanto é não me sentir tão desconfortável diante das pessoas."
Caroline Suffi, 25 anos,
universitária, de Salvador
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